segunda-feira, 1 de março de 2010

.a culpa das lágrimas.

.virou o rosto numa velocidade incrível
contra a sua vontade, contra a vontade do pescoço,
na verdade, antes mesmo de qualquer vontade.

.quase imediatamente após a bofetada
o moleque sente as lágrimas por virem
segura-as firme
vira pra mãe e clama
como o esforço de quem segura um grande peso
e sente, com esse peso, uma imensa incapacidade de falar
uma das primeiras palavras que aprendeu:
- mãe...?.

.como quem não percebe
e realmente não percebendo
o titânico esforço do menino em segurar as lágrimas
e dizer a palavra que, diretamente,
não significa "por favor, me ajuda aqui, agora, eu preciso mais que nunca",
mas que no momento significava exatamente isso,
a mãe, com a cara de indiferença mais porca do mundo
nem olha pra cara do guri e diz, como quem olha pro horizonte
tentando enxergar algo:
- você mereceu. agora aguenta.

.nisso, não há mais ajuda
não há reforço
ele está sozinho no mundo
só ele
e a vontade de chorar
vontade que passa pelos olhos
chegam a doer
mas não se resumem a eles
no choro, a garganta apertada chora,
o peito contraído chora,
as mãos e as bases da perna tremendo choram.
mas ele não deixa parte nenhuma do seu corpo chorar.

.o menino abaixa a cabeça,
como que para evitar gravitacionalmente que as lágrimas escapem,
e tenta calar o corpo todo de uma só vez.
tem vergonha e medo de mostrar que não aguenta segurar
aquela vontade que dói
aquela vontade que, quanto mais eles segura
mais se assemelha a um monstro brincando em seu corpo todo.

.o pai, autor da bofetada, ainda com a mão vermelha e quente
do atrito com a pele nova do rosto do guri,
repara que seu filho, seu próprio filho,
sangue do seu sangue,
fruto de sua porra,
resultado de seu desempenho sexual,
futuro herdeiro de seus negócios bem e mal sucedidos,
está de cabeça baixa como quem quer chorar,
não aguenta e grita
(grito que, para o moleque, dói tanto quanto o tapa):
- engole o choro, porra. tu não é homem, moleque?.

.e a vontade de chorar cresceu no menino
como um ser vivo e independente.
e, no máximo que ele pode,
se segurou.
tremeu tanto o corpo todo que tinha medo de cair.
sentiu a face avermelhar-se
sentiu a palma da mão do pai latejar em seu rosto
sentiu seus olhos umedecerem cada vez mais
sentiu que estava fora de seu controle.
com as respostas do pai e da mãe, só conseguia se culpar
e pensava que se chorasse
seria ainda pior
mostraria fraqueza
mostraria discordância
mostraria que seu corpo se achava certo
apesar da opinião do pai e da mãe.

.se controlou tanto
se segurou tanto
que, por fim,
não sentia mais culpa por aquela enxurrada de lágrimas que caiu.
sabia bem: por ele, não haveria choro.
as lágrimas choraram sozinhas, sem ele deixar.
a culpa, no fim de tudo,
era das lágrimas.

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